Um olhar sobre a formação negra na engenharia brasileira
Professor Henrique Cunha Júnior pesquisa a formação e demais desafios para a inserção da comunidade negra brasileira. Créditos: Arquivo Confea
A trajetória acadêmica representa a atuação de um intelectual discreto e dedicado à causa do movimento negro. Uma relação de militância que o integra a seus pais e avós. Engenheiro eletricista pela USP com doutorado pelo Instituto Politécnico de Lorraine, na França, e sociólogo pela Unesp, com mestrado pela Universidade de Lorraine, Henrique Cunha Junior é um autor respeitado desse universo, além de orientador de dissertações e teses sobre o tema da atuação do negro no Brasil. Ficcionista em “Tear Africano: contos afrodescendentes” e autor de “Espaço Público, Urbanismo e Bairros Negros”, além de organizador de diversas obras acadêmicas, ele é também especialista nos desafios da formação da população negra brasileira.
Fundador da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN, o professor visitante do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor titular do curso de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC) desde 1994, Henrique Cunha Junior apresenta a seguir um pouco da sua visão de mundo, sob os motes do Dia Nacional da Consciência Negra. em 20 de novembro, e ainda da titulação do engenheiro André Rebouças (1838-1898) como Herói da Pátria, temas que também foram debatidos com o historiador Antonio Higino, em matéria exclusiva do Confea que pode ser conferida aqui.
Confea - Entre os profissionais negros, os irmãos Rebouças são uma referência para a comunidade negra brasileira. Foi também para o senhor? Qual a importância desse legado, sobretudo diante do silenciamento do pensamento negro brasileiro e sua inferiorização cultural histórica?
Henrique Cunha Júnior - O engenheiro André Rebouças (1838-1898) sempre teve a minha admiração e carinho. Ele foi responsável pela realização de obras importantes no país. Referência importante para os estudantes negros, a exemplo de Mestre Valentim (1745-1813), na construção do Rio de Janeiro. André e Antônio Rebouças com as ferrovias. Assim como a engenheira Enedina Marques (1913-1981), do Paraná, que se formou em 1945, sendo a primeira engenheira negra do país. E tive também o engenheiro eletricista Cláudio Carmo, formado em 1952, amigo do meu pai. Era também da Família de Negros da Irmandade do Rosário de São Paulo e fez algumas obras importantes como os projetos de engenharia elétrica de Cubatão e Camaçari. Eram referências muito fortes, por isso tive algum sucesso na área de Engenharia. André tem um número grande de aspectos pelos quais podemos admirá-lo. Estou fazendo uma pesquisa sobre a herança negra em Petrópolis, que também não tinha esse reconhecimento. E uma das questões está ligada à ferrovia erguida por André. Ele foi um engenheiro e empresário que investiu em coisas importantes para o Brasil. Além de ser um herói da pátria, por ter servido ao Exército na Guerra do Paraguai, também era um visionário, preocupado com o progresso do país. Tinha um projeto pioneiro para o Brasil, um projeto bastante democrático, pretendia que houvesse o que chamamos hoje de reparação, incluindo um campo de educação voltado para os ex-escravizados. Assim como era também o projeto abolicionista do advogado Luís Gama (1830-1882). Se tivéssemos isso, teríamos um país melhor. A população não teve o prestígio da República, pelo contrário, diferente dos imigrantes europeus. Do ponto de vista de pensar a industrialização brasileira e ainda os transportes na formação econômica brasileira, André Rebouças é um dos grandes nomes do país. Não conhecemos, antes de suas palestras, nenhum projeto da envergadura daquele que ele apresentou. Talvez outro projeto também de um negro ue tenha alguma relevância tenha sido o do governador do Amazonas, Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900). Rebouças pai – o advogado e político Antônio Pereira Rebouças (1798-1880) – já era um pioneiro de ideias, pensava na Abolição, nas liberdades democráticas, questões que deveriam ter sido incorporadas às nossas constituições. André Rebouças fez então obras ferroviárias e portuárias para um Brasil que dependia do trânsito de mercadorias. Indo a Europa, ele e seu irmão viram essa importância e projetaram esses meios de transporte para o Brasil.
Confea - Qual o significado de ter André Rebouças como Herói da Pátria e ainda a um mês do Dia Nacional da Consciência Negra? Qual a representação desta data que a partir deste ano é reconhecida como feriado nacional?
Henrique Cunha Júnior - Recentemente, tivemos a felicidade de ter André Rebouças entre os heróis da pátria. São referências tardias, que vêm muito tempo depois, assim como Luís Gama foi reconhecido pelo Largo de São Francisco como um advogado importante para o país. Mas é um reconhecimento importante porque a juventude negra precisa de referências, de que os engenheiros negros são bem sucedidos para termos cada um de nós, esses meninos e meninas, uma referência. Tê-lo como herói é de grande importância. Isso deveria ser levado para vários tipos de espaços. Agora, ser herói da pátria nos leva a rememorar também os fatos da Guerra do Paraguai, onde a atuação negra foi relevante em todos os sentidos, a maioria do Exército era de negros, como responsáveis pelas obras, então, reconhecer a importância de negros e negras é uma coisa necessária, que cria referências para todo o Brasil. Precisamos dessas referências. Precisamos também homenagear a Enedina Marques, primeira negra a se formar no Brasil. Isso é importante para o futuro do país, para a dignidade negra ser respeitada, o que hoje não é. Eu mesmo dava consultoria e havia dificuldade de ser reconhecido como uma figura negra com o meu currículo. Esse tipo de desagravo deve ter consequências profundas na formação de homens e mulheres. Divulgar essa figura histórica ajuda a nos conhecer de forma democrática e a mostrar que nós negros sempre pensamos a construção da história, da engenharia, do pensamento brasileiro. O reconhecimento de uma trajetória, um líder, uma pessoa de grande relevância, não só na história da população negra, mas brasileira. Nós estamos nos aproximando do dia 20 de novembro, que vai ser feriado nacional, uma data levantada como histórica a partir do movimento negro de 1970. Eu tinha 17 para 18 anos, já tinha uma cultura de movimento negro, com meus pais, em São Paulo, meus avós eram intelectuais negros, desde o começo do século XX. Nós mantemos uma economia com pensamento eurocêntrico, e nessa perspectiva, esse é um dia para repensar o Brasil com uma participação ampla da população negra. Pensar o que o Brasil recebeu de conhecimento da engenharia africana, nos grandes engenhos de madeira, que eram desconhecidos dos portugueses. Pensar o 20 de novembro é pensar a contribuição da engenharia negra na engenharia brasileira. Um dos motes importantes é a ética. Havia o mote racista de que negro não dava para Matemática. A partir de premissas de negros e negras que fizeram a engenharia no Brasil, repensar o lugar que população negra deve ter dignidade para a população descendente de africanos. Estou introduzindo jogos africanos, como a mancala. E pensar que grandes passagens da Matemática são heranças africanas: no jogo de Ifá, temos a primeira reflexão sobre números binários, essenciais para a informática. Esse 20 de novembro deve ser como uma consciência do Brasil para eliminar os possíveis preconceitos dos grandes racistas que enfrentamos. Deve ser também um Dia do Negro na Engenharia, lembrando de André e Antônio Rebouças como dois marcos da Engenharia brasileira.
Confea - Seu pai era um militante do movimento negro, sobretudo em relação às dificuldades enfrentadas no sistema educacional brasileiro, das quais ele também foi vítima. O senhor também é sociólogo e já publicou e organizou livros e artigos sobre o tema da reprodução da dominação eurocêntrica, que atua inclusive na educação. O profissional negro precisa estar consciente da sua condição histórica? Como isso se deu em seu caso?
Henrique Cunha Júnior - Meu pai era um arquiteto autodidata, que trabalhou na secretaria de Viação de São Paulo. Quando criança, vivia em um forte conjunto residencial na região da Rua Augusta, e trabalhou em tinturaria alemã e falava alemão. Fez o ensino médio no Osvaldo Cruz. E conheceu um arquiteto alemão que deixou uma herança apreciável, o material da Bauhaus alemã. Ele leu esse material e depois se empregou na área de Arquitetura e Urbanismo, tentou o reconhecimento, mas não conseguiu, e trabalhou a vida toda na Arquitetura, tentou que eu fosse arquiteto, e tudo o que sei de Matemática aprendi na prancheta. Fui também incentivado a ir para a engenharia porque nos anos 1960 e 1970, a revolução eletrônica me levou a fazer engenharia elétrica na USP. E tinha uma forte militância no movimento negro, eu brinco que cresci no movimento negro porque meu pai e minha mãe eram militantes desde a década de 1930, escrevendo no jornal “O Clarim da Alvorada”, e na Associação Cultural do Negro de São Paulo, dos anos 1950 até 1968. Todas as semanas íamos para reuniões, entre elas, sobre palestras que eram personalidades históricas do Brasil, como o engenheiro negro Teodoro Sampaio (1855-1937), um dos fundadores da Escola Politécnica de São Paulo, que não aparece na placa de fundação por uma questão de racismo. Tínhamos um habito de divulgar, escolarizar as mentes, combater o racismo. Sou privilegiado, meus pais sempre mostraram as barreiras para a população negra e formas de ultrapassar essas barreiras. Muitos jovens desistem em função da forma como o racismo se apresenta. Tenho muito do que meus pais me ensinaram na minha vida. Sem eles, não seria o que sou de forma nenhuma. Mas meus avós também eram militantes do movimento negro. Em 1926, há uma fotografia em uma homenagem a Luís Gama, em que meus avós participam. Então, ter feito parte da Associação Cultural do Negro, que tinha uma escola de teatro, dirigida por Tereza Santos, nos anos 1950. O panafricanismo não foi a principal via do movimento negro no Brasil, mas lá para o final dos anos 1940, o Brasil tinha saído da ditadura de Vargas. Uma das reconstruções foi a Associação Cultural dos Negros, em São Paulo. Reunindo pessoas que tinham feito “O Clarim da Alvorada” e escritores como Oswaldo de Camargo (1936). Era um núcleo de escritores, mantínhamos um ciclo cultural. A associação tinha uma senhora alemã, dona Dóris, que dava aulas de canto para o grupo do Teatro Experimental do Negro, que esteve também no Rio, com Abdias do Nascimento (1914-2011). Em São Paulo, o Teatro Experimental do Negro teve o teatro popular brasileiro, ligado ao Partido Comunista. Havia essa divisão. Solano Trindade (1908-1974) atuou na Associação e depois só o Teatro Popular. Esse teatro viajou pelo mundo. A associação era uma ala de pensadores, que tinha ligação com o mundo da população negra na década de 1950, em São Paulo. Não era a única, tinha o clube social Coimbra e outras instituições no interior do Estado. Fiz parte quando criança e é muito importante na formação da literatura e do teatro negro paulista que se ampliou na década de 1970. Temos referências amplas que não passaram para a história oficial brasileira. Precisamos resgatar essa história dos pontos de pensamento da política brasileira. Conheci o deputado Esmeraldo Tarquínio (1927-1982), que seria candidato a governador do Estado de São Paulo. Infelizmente, com a ditadura militar, nossos candidatos como Nereu Ramos, o grande pensador do Brasil, foram cassados. Então, o que vimos passar pela Associação Cultural do Negro não se realizou. Nossos sonhos foram bloqueados pela ditadura militar, que perseguiu também os negros ricos paulistas que financiariam essa campanha, como Roberto Camargo.
Confea - Em seus artigos, livros organizados, orientações e em sua dissertação, o senhor denuncia as assimetrias para o acesso e a permanência nesse ambiente educacional racista, valorizando a importância da cultura para esse contexto e introduzindo os conceitos de Africanidades Brasileiras e Afrodescendência, ao final dos anos 1980. Como o senhor percebe os desafios para a formação das “etnias afrodescendentes” do país, em todos os níveis?
Henrique Cunha Júnior - Tenho atuado como professor do curso de Engenharia Elétrica na Universidade Federal do Ceará – UFC. Nesse ensino, tenho uma disciplina que discute a sociedade, as ciências e as engenharias, fazendo um levantamento macroeconômico, mostrando como o planejamento energético é um dos pontos essenciais para o desenvolvimento, inclusive, sob o ponto de vista das populações negras. Sou também professor visitante do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia – UFBA, onde desenvolvemos ideias de bairros negros, arquiteturas e urbanismos africanos. Uma inovação para a construção dos meios urbanos. Meus artigos fazem esse entrelaçamento das áreas técnicas com as áreas da sociedade brasileira, como esse povo vive, produz os espaços, e quais restrições as estruturas governamentais têm imposto a esses espaços. Tenho discutido muito educação, sob perspectivas da população negra. Temos imensas ideias que não são divulgadas. Um dos trabalhos importantes é a questão da formação de pesquisadores negros na educação. Tenho um trabalho que reúne a UFC e a Universidade Federal do Cariri – UFCA, além de escolas estaduais. Nesse trabalho, temos a atuação grande de profissionais voltados a pensar o lugar da formação negra na história do país e como isso deve ser introduzido na história do Brasil. Estou em um grupo campeão em orientações de teses, já orientei direta ou indiretamente 31 teses e temos mais de 80 dissertações. Sempre apostando no ideal da transdisciplinaridade e da complexidade sistêmicas, que são legados africanos. E aí pensamos o lugar das populações negras no Brasil.
Confea - Diante das suas especificidades históricas, que incluem a “alienação cultural”, quais são as principais dificuldades do estudante negro para acessar a para cursar Engenharia hoje? Elas se diferenciam em relação a outros cursos?
Henrique Cunha Júnior - Ao falar da população negra no Brasil, temos que falar das especificidades dessas populações. Não em separações, mas aquilo que afeta o grupo social negro, e o que afeta esse grupo é o racismo estrutural. Somos minoria em todas as coisas que afetam a vida do país, como o Congresso Nacional e as câmaras municipais, enquanto somos maioria nas populações do Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais. Isso mostra uma estrutura que inviabiliza o nosso crescimento. Não podemos negar que esse racismo tem efeitos ruins para toda a sociedade brasileira. As cotas foram apedrejadas pela sociedade e ainda não há políticas de cotas em todo o país. Mas a Unicamp percebeu que com as cotas os alunos tinham alguma especificidade. São alunos com um treino social maior que os não cotistas, uma visão ampliada. Eles enxergavam a realidade de uma maneira mais cuidadosa, conhecendo os problemas das populações negras que vivem em periferias onde o Estado não investe. Hoje, 30% do orçamento são gastos onde moram 70% da população brasileira. Há mais investimento junto às populações brancas. Falo com geógrafos, sobre os nossos aparelhos culturais e outras especificidades históricas. Crescemos em um racismo vigoroso, estrutural. O combate ao racismo estrutural precisa ser contínuo. A polícia me parava constantemente até ficar com cabelos brancos. Da mesma forma, a engenharia brasileira precisa incentivar os negros e negras. Muito do conhecimento da população foi perdido na história e pode ser útil ao país, como o uso da mamona, uma planta trazida pelos africanos, como fonte de energia. E assim, pensar em todas as contribuições. Não só como homenagem, mas como instrumento para o futuro dessa engenharia.
Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea
Com a colaboração da asssessoria de Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC)