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André Rebouças: negritude e visão de mundo na história da Engenharia


Pesquisador da trajetória dos irmãos Rebouças, o historiador Antonio Higino desvenda a contribuição tecnológica e social de André Rebouças, novo Herói. Créditos: Arquivo CREA-RS

Brasília, 6 de novembro de 2024.

Até o último dia 17 de outubro, o túnel que faz a ligação entre a Zona Norte e a Zona Sul do Rio de Janeiro; a avenida Rebouças, em São Paulo, e o bairro Rebouças, em Curitiba, consagravam o legado do engenheiro baiano André Pinto Rebouças (1838-1898). Mas a partir dessa data, as reverências que fazem parte do cotidiano dos paulistanos, desde 1916, e dos cariocas e curitibanos, desde os anos 1960, e que homenageiam ainda o irmão, o também engenheiro militar Antônio Pereira Rebouças Filho (1839-1874), ganharão ainda mais evidência. Desde aquela data, uma semana após a realização da 79ª Semana Oficial da Engenharia e da Agronomia (Soea), na capital do estado natal dos irmãos Rebouças, e às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, pela primeira vez celebrado como feriado nacional, em 20 de novembro, André passou a fazer parte do Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, também conhecido como Livro de Aço. 

A iniciativa marca uma trajetória reconhecida até mesmo por seus contemporâneos, fato raro em nossa história. Principalmente em se tratando de uma pessoa negra, em pleno Segundo Reinado. Rebouças integrará uma lista, criada em 1992 e definida em lei entre brasileiros mortos há pelo menos 10 anos, e que inclui nomes como Santos Dumont, Anita Garibaldi, Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Luís Gama, Joaquim Nabuco e Machado de Assis.  Eles são considerados “protagonistas da liberdade e da democracia”. Com o formato de sua publicação redefinido pela Lei 14.984/2024, o Livro fica exposto no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Conheça um pouco mais sobre essa história, em reportagem da Agência Brasil.

Antonio Higino durante o lançamento da obra "O cocheiro do carro do progresso",
no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro

A inclusão de André Pinto Rebouças no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, por meio da Lei 15.003/24, proporciona o reconhecimento a um dos maiores engenheiros e intelectuais do país.  Os irmãos se formaram pela Escola Militar, em 1860. As reformas das fortalezas de Santos, Paranaguá e Santa Catarina, em 1863, foram seus primeiros projetos, após viverem dois anos na França e na Inglaterra, especializando-se em portos, estradas e ferrovias. No ano seguinte, André projetou os novos portos do Maranhão, do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro. A Guerra do Paraguai (1864-1870) o levou ao batalhão dos engenheiros, participando em seguida da obra do porto da cidade e dirigindo, ao lado de Antônio, as empreitadas das Novas Docas da Alfândega (atual Praça XV) e das Docas de D. Pedro II (ao lado do Cais do Valongo).

A história das docas de D. Pedro II em dois tempos: construção erguida por André Rebouças
e armazém abandonado: "Patrimônio histórico que deveria estar tombado e revitalizado",
segundo o historiador Antonio Higino. Montagem: Eduarda Mafra/Confea

Além das obras, de livros como “Memórias sobre os Caminhos de Ferro da França” e “Estudos sobre Portos de Mar” e de uma atuação junto ao Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, fundado em 1880, André se tornou conhecido como abolicionista, a partir de 1880 e em várias entidades, apesar de manter seus laços com a Monarquia, ao criticar o formato da República instalada por Floriano e defender um projeto democrático e antissegregacionista de nação. Sua mãe era Carolina Pinto Rebouças, filha de um comerciante, e seu pai, o advogado e deputado Antônio Pereira Rebouças, filho de um alfaiate e de uma negra alforriada e conselheiro de Dom Pedro II. 

Apesar das dificuldades, André pôde se formar na Escola Militar, a exemplo do irmão, cujas obras de destaque incluem a ligação entre os municípios paranaenses de Antonina e Curitiba (Subida da Serra do Mar, Estrada da Graciosa); a idealização da Ferrovia Curitiba-Paranaguá e o prolongamento da Estrada de Ferro de Campinas a Limeira e São João do Rio Claro, quando o engenheiro-chefe contraiu a febre tifoide que o mataria na capital paulista. Coautor dos “Estudos sobre Portos de Mar”, Antônio denomina uma rua em Porto Alegre e a cidade paranaense Rebouças. Em Curitiba, há também a rua Engenheiros Rebouças.

“André Rebouças é um polímata. Participou da Guerra da Tríplice Aliança até ser hospitalizado por conta da varíola. Frequentou o pensamento de distintos intelectuais, como Benjamin Franklin, Liev Tolstói e George W. Williams. Sua diversidade não se restringiu ao exercício intelectual, pois, de forma institucional, além do projeto de uma doca antiescravagista, ele fundou e participou de importantes associações, como a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, a Confederação Abolicionista, a Sociedade Central de Imigração e o Club de Engenharia“, diz o historiador e escritor Antonio Carlos Higino da Silva, na entrevista a seguir.

Pós-doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC), o autor explorou essa dimensão holística e contemporânea da obra de André Rebouças em seu segundo livro sobre o engenheiro, “O Cocheiro do Carro do Progresso: os desafios da reforma portuária do Rio de Janeiro durante o Segundo Reinado” (Appris, 2024). Sua pesquisa agora se volta à formação intelectual de André e Antônio, após debruçar-se ainda sobre a trajetória do irmão bem menos conhecido, mais novo e também engenheiro, José Rebouças (1856-1921), tema de sua participação na obra “Vidas impressas: intelectuais negras e negros na escravidão e na liberdade”, lançada na última segunda-feira (4/11) pelo Selo Negro (disponível na Amazon). Os demais livros de Antonio Higino podem ser adquiridos diretamente com o autor pelo telefone (21)98587-6690 e pelo Instagram @Nos_Bracos_da_Historia.


Confea - No seu livro mais recente, lançado em novembro do ano passado, no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, você analisa a importância do legado de André Rebouças para a “agenda mundial modernizadora”, que associa as obras de revitalização do porto do Rio às de Londres e Marselha, no século XIX, ao processo abolicionista. Nesse sentido, parece haver uma conjugação de aspectos urbanísticos e sociais progressistas, bastante simbolizada pelas trajetórias de André e Antônio Rebouças. Que projeto era esse e qual a importância de retomá-lo hoje?

Antonio Carlos Higino da Silva - Antes de falar especificamente dos Rebouças, é importante lembrar que a referida agenda mundial modernizadora faz parte da difusão de um modelo de vida catalisado pela Segunda Revolução Industrial. A expansão de ferrovias, telégrafos e da navegação à vapor concorreu para uma nova gestão do espaço urbano. Talvez possamos dizer que esse foi o nascimento do mundo ultra conectado que vivemos hoje. Essa inovação deu-se pela presença de companhias detentoras de novas tecnologias, as quais se cotizavam através de ações. Os meios utilizados por essas sociedades possuíram particularidades em cada localidade estudada (Rio de Janeiro, Londres e Marselha). Mas, em linhas gerais, elas caracterizaram-se pelo seu perfil monopolista, escravocrata e fugaz. Desta maneira, buscou-se substituir a tecnologia obsoleta. Entretanto, a lógica de ganhos advindos da produtividade transferiu-se da cidade para um renovado sistema bancário que começava a se globalizar. Essa dinâmica esgarçou as relações entre corporações, latifundiários, donos de terrenos, comerciantes locais, proprietários de escravizados e as novas companhias. Esse desgaste deveu-se, em grande parte, ao perfil concentrador das novas empresas. Como exemplo dessa problemática temos: a Grande Greve portuária de 1889, em Londres; o “xenofobismo” entre marselheses e parisienses, durante a reforma do porto, e o embargo à inauguração das obras das Docas Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Com esta breve resenha apresento algumas ideias desenvolvidas no meu livro, “O cocheiro do carro do progresso”, que é uma adaptação da minha tese de doutorado. Sendo assim, me permito afirmar que as modernizações portuárias, as quais demandaram a integração das ferrovias ao novo modelo de navegação à vapor, fizeram parte de uma sistemática mais ampla de transformações econômicas, políticas e sociais. Neste contexto, os portos de Londres e de Marselha se tornaram os maiores do mundo e serviram de inspiração aos mais importantes projetos americanos, Rio de Janeiro e Nova Iorque. Cabe salientar que, durante o Segundo Reinado, a primeira obra de reforma portuária no Brasil aconteceu na região que hoje é conhecida como Praça XV de Novembro. Contudo, esse projeto tinha limitações técnicas à atracação de novas embarcações à vapor e realizava-se com recursos do governo imperial, fato que retardava demais a conclusão do projeto. Essas restrições levaram os engenheiros André e Antônio Rebouças a pesquisar soluções para os problemas portuários brasileiros durante os estudos que realizaram na Europa. Ao retornar ao Brasil, embora tivesse trabalhado no projeto da Praça XV por um breve período, André Rebouças apresentou ao Imperador Pedro II soluções técnicas e administrativas para avançar na modernização portuária. Neste contexto, nasceu o maior projeto portuário imperial brasileiro: a Doca Dom Pedro II, que seria financiada pela iniciativa privada, instalou-se no bairro da Saúde, mais precisamente no Valongo. Idealizado exclusivamente por André Rebouças, o empreendimento buscou conectar-se a tendências tecnológicas e econômicas mundiais daquele momento, adotando, em contrapartida, a singularidade de interditar o uso de mão de obra escravizada e oferecer proteção social a seus funcionários. Esse é um motivo valioso que configura, ainda hoje, a doca do Rebouças como um símbolo de resistência urbana ímpar no coração do Rio de Janeiro, mas que serve de exemplo para todo o país.  Planejada na década de sessenta do século XIX, ou seja, muito anos antes da efervescência do movimento abolicionista, a iniciativa do jovem empresário afrodescendente, aos vinte e oito anos de idade, despontava como uma ação vanguardista diante do círculo social escravocrata que ele frequentava. No momento em que escrevo, o principal armazém da Doca Dom Pedro II está fechado, aguardando a definição de seu destino. Torço para que aqueles e aquelas que decidirão o futuro desta instalação se revistam dos anseios libertários de Rebouças e fomentem novos destinos para nossas cidades.


      
Confea - Você conhece bastante a trajetória dos irmãos Rebouças. O que despertou esse interesse? Qual a importância da História para a recuperação das personagens negras brasileiras? Você pretende publicar algum outro aspecto das suas trajetórias?

Antonio Carlos Higino da Silva - Como um afrodescendente, o meu interesse pelo André Rebouças nasceu de uma demanda pessoal que foi orientada por meus professores no curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Narrativas históricas que resgatem biografias negras ampliam a visão acerca da contribuição desse grupo populacional no cenário brasileiro, avançando para além da tradicional temática sobre a escravidão, sem retirar sua devida importância. Nessa direção, também considero bastante estimulante a articulação da narrativa histórica com outras áreas de saber. Meu intuito nesse caso é despertar no leitor e na leitora uma relação mais intimista com essas trajetórias. Penso que quando percebemos as semelhanças cotidianas entre nossas vidas e a desses personagens, de alguma maneira, nos organizamos melhor diante dos maléficos efeitos da diáspora. Essa mentalidade me fez produzir ao longo da pandemia um outro livro chamado, “André Rebouças no divã de Frantz Fanon”.  Trata-se de um fictício encontro entre Rebouças e Fanon para conversar sobre alguns casos de racismo vividos pelo engenheiro. Nesse trabalho, procurei costurar uma narrativa que me permitisse conjugar fatos, memórias e conceitos da psicanálise fanoniana. Embora ainda estivesse no início de meus estudos na área de psicanálise, acredito que o livro é uma boa porta de entrada para conhecer ambos os personagens e para que o leitor e a leitora possam refletir acerca de elementos de sua própria subjetividade. Tenho alguns escritos que articulam história e educação, recentemente, me dediquei aos aspectos da educação infantil de André e Antônio Rebouças, mas esta publicação ainda está no prelo e em breve espero iniciar a divulgação dela. Por último, fiz uma investigação junto com o Arquivo Público da cidade de São Paulo.  Nesse trabalho, trago informações inéditas sobre o esquecido engenheiro José Rebouças, irmão mais novo de André e Antônio. Um trabalho lindo recém-publicado pela editora Selo Negro e que foi intitulado “Vidas Impressas”. 

Confea - O Brasil acaba de reconhecer a importância da trajetória de André Rebouças, por meio de sua inclusão no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Qual o peso da contribuição do engenheiro André Rebouças para esse reconhecimento?

Antonio Carlos Higino da Silva - Embora tenha ocorrido de forma tardia, esse reconhecimento é importante. Pois ajuda a corrigir o apagamento imputado à trajetória construída por André Rebouças. Ele viveu por mais de sessenta anos e sua vida foi gradativamente se confundindo com a história do Brasil imperial. Militar, engenheiro, professor, jornalista e ativista político da causa abolicionista. Essa longa biografia não deve ser vista de forma linear e taxativa. Antes de tudo, é necessário evitar submetê-lo a rótulos. Rebouças é um polímata. Participou da Guerra da Tríplice Aliança até ser hospitalizado por conta da varíola. Frequentou o pensamento de distintos intelectuais como: Benjamin Franklin, Liev Tolstói e George W. Williams. Sua diversidade não se restringiu ao exercício intelectual, pois, de forma institucional, além do projeto de uma doca antiescravagista, ele fundou e participou de importantes associações, como: a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, a Confederação Abolicionista, a Sociedade Central de Imigração e o Club de Engenharia. Em sua vida privada, atuou em diferentes frentes desde muito cedo, contribuiu nos bastidores da relatoria da lei do Ventre Livre, na redação de projetos educacionais para libertos e na busca de apoio financeiro para a turnê de Carlos Gomes na Europa. Enfim, com recursos próprios patrocinou “meetings” abolicionistas na década de oitenta do século XIX. Indubitavelmente, André Pinto Rebouças merece destaque como defensor e promotor de um Brasil que ainda desejamos alcançar.

Confea - São apontadas contradições na vida de André, como o monarquismo e um abolicionismo tardio, apesar da sua veemente defesa pelos direitos da comunidade negra, inclusive na sua prática profissional. Quem foi essa personalidade, descortinada mais profundamente em seu primeiro livro, e qual a importância da perspectiva tecnológica para a sua construção?

Antonio Carlos Higino da Silva - Penso que apontar um abolicionismo tardio em André Rebouças faz parte de um viés que restringe as ações libertárias pelo fim da escravidão a um determinado segmento social e, consequentemente, atribui o protagonismo dessa luta aos meios instituídos por esses personagens nos anos oitenta do século XIX. Como disse há pouco, Rebouças atuou desde muito cedo e sua dedicação a causa foi aumentando à medida que ele ganhava prestígio, autoridade e reconhecimento do governo monárquico. Quando falo desse lugar de poder ocupado por Rebouças, faço questão de lembrar que estou me referindo agora a um homem com cinquenta anos de idade. Ele já havia deixado registros de suas contestações às monarquias europeias, devido às guerras ocorridas, e de sua predileção pelo republicanismo norte-americano, apesar do pungente racismo sofrido por ele quando visitou aquele país. Entretanto, de forma pragmática, compreendia que o Brasil ainda não estava pronto para o novo regime e sua denúncia da existência de um grupo de “republicanos do 14 de maio” podem justificar sua preocupação. Esses “pseudorepublicanos” eram escravocratas que começaram a apoiar um regime republicano logo após a promulgação da Lei Áurea a fim de destituir a família imperial do poder. A abolição da escravatura sem o pagamento de indenização para os proprietários foi o motor desse revanchismo. Enfim, foi neste contexto que Rebouças realizou seu autoexílio ao fim do Segundo Reinado, e não por causa de uma irrevogável adesão ao monarquismo. Na verdade, ele não enxergou qualquer possibilidade de recuar ou negociar suas convicções libertárias com os novos dirigentes do país e isso pode ser comprovado através das cartas e artigos que produziu durante o exílio.

Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea 

Com as contribuições da assessoria de comunicação da Editora Appris e da presidência do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro

 

 

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